09 fevereiro 2007

Anistia, jamais

Texto extraído da Folha de São Paulo, de 09/02/2007




Agora que se fala em anistiar José Dirceu, é fundamental relembrar os fatos que levaram à sua cassação.
O deputado Júlio Delgado, relator do processo de cassação, em seu parecer, acentuava que Dirceu, por cumplicidade comissiva ou omissiva, como coordenador político do governo, arquitetou a engenharia política que, por quase dois anos, ideou e construiu o que vulgarmente, nos escaninhos do Congresso, se rotulou de "governabilidade do amor remunerado", sobre a qual se expandiu a base de sustentação do governo na Câmara.


Observava Júlio Delgado que, diante do conjunto expressivo de evidências, a cassação de Dirceu se impunha como meio de restaurar a dignidade e a credibilidade da Câmara, a ficar imune a influências deletérias, como a exercida por esse esquema de repasse de recursos a parlamentares.


Ressaltava, também, o parecer, ter se firmado uma aliança política que envolvia um esquema de patrocínio de despesas de campanha e de incentivos financeiros a retirar do Poder Legislativo a autonomia e a isenção necessárias para o exercício de suas atividades típicas.


Júlio Delgado concluía que, seja como autor ou articulador, a conduta do ex-deputado José Dirceu foi capaz de fraudar o regular andamento dos trabalhos da Câmara dos Deputados, influenciando em suas deliberações e votações. Em apertada síntese, esse o teor do parecer pela cassação.


Por esses fatos foi cassado, sofrendo a pena acessória de inelegibilidade pelo prazo de dez anos. A votação pela cassação foi expressiva, colhendo-se 293 votos a favor e 192 contra. Recordados os fatos, cumpre examinar se os mesmos são compatíveis com o pretendido recurso à iniciativa popular para deslanchar o projeto de anistia de José Dirceu.


A Constituição, no art. 14, institui as formas de participação popular no processo legislativo, como plebiscito, referendo e iniciativa popular. A lei nº 9.709/98, que disciplinou o processo de participação popular, estatui que o plebiscito e o referendo devem versar sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa. O projeto de lei proposto por iniciativa popular deve ser apresentado à Câmara dos Deputados subscrito, no mínimo, por 1% do eleitorado nacional, distribuído pelo menos em cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
Em correspondência com as outras formas de participação popular e pelas exigências de 1,5 milhão de assinaturas em pelo menos cinco Estados, verifica-se que a matéria de projeto de iniciativa popular também não pode deixar de ser de acentuada relevância. Não é efetivamente o caso.


Se o PT tem um grande número de deputados e forma um bloco majoritário, estando na presidência da Casa, por que não ser o projeto de lei de anistia de José Dirceu apresentado pelo partido ou por um grupo de deputados? A razão é simples: pretende-se mobilizar o país no processo de beatificação de José Dirceu, transformando a coleta de assinaturas na mais perfeita mistificação para ungi-lo no papel de coitadinho injustiçado, a ser elevado a pretendente ao Planalto em 2010. Estaria a começar a campanha presidencial.


O processo de beatificação brotaria do povo, que o aclamaria um perseguido político a ter a elegibilidade devolvida por força do reclamo popular. A pantomima estaria pronta.


Por outro lado, também a anistia não se compadece com a cassação de José Dirceu e com os fatos pelos quais foi cassado. A anistia aplica-se, em geral, para os crimes políticos. Tem cabimento quando as circunstâncias históricas revelam que a paz social precisa ser readquirida, tanto que se extingue a punibilidade riscando do mundo o fato. Pela anistia se cobre a história com o véu do esquecimento, pois concerne ao fato, e não à pessoa. Considera-se o fato como inexistente.
O maestro, que regia o "concerto" do mensalão, agora quer transformar a batuta em varinha mágica para fazer desaparecer a história, jogando ao absoluto esquecimento os fatos graves que vitimaram a vida política de nosso país, em especial a Câmara.
Até quando a nação se permitirá ser enxovalhada pela mentira e pela desfaçatez de uma mistificação? E mais: em desprezo ao Supremo Tribunal Federal, onde tramita a ação penal, na qual o pretendente a beato responde no âmbito criminal pelos mesmos fatos pelos quais foi cassado.


Até quando?


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MIGUEL REALE JÚNIOR, 62, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Paulista de Letras. Foi secretário da Segurança Pública (gestão Montoro) e da Administração (gestão Covas) do Estado de São Paulo e ministro da Justiça (governo FHC).